Saturday 23 November 2013

Histórias que Contamos

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Título original Stories We Tell
Realização Sarah Polley
IMDB  

Sarah Polley realiza este estranhíssimo e desconcertante filme que se equilibra num gume que a todo o momento ameaça cortá-lo. No início aparece-nos como um documentário que se debruça sobre a história familiar da própria Sarah Polley, tal como narrada pelo seu pai, pelos seus irmãos e irmãs e alguns familiares. Pelo meio dos testemunhos que estes dão perante a câmara, atrás da qual Sarah Polley os vai interpelando meia-volta, surgem imagens de filmes de super-8 que identificamos como sendo filmes amadores de família tomados na altura a que reportam os acontecimentos relatados por estes. Depois, a páginas tantas, apenas pelas pistas que Sarah Polley nos deixa na montagem, apercebemo-nos de que na realidade muitas (todas?) as imagens de super-8 que temos estado a ver são na realidade filmes tomados “agora”, ou seja, são imagens filmadas em super-8 por Sarah Polley de propósito para este filme, com actores a interpretar os papéis do pai e da mãe de Sarah Polley, e dos seus irmãos-crianças e dela própria-criança e dos seus familiares e dos amigos e conhecidos dos pais de Sarah Polley. E que fomos nós, espectadores, que investimos naquelas imagens de super-8 o significado de serem filmes amadores de família, apenas porque como seres humanos está na nossa natureza tecer significados e construir relações de significados nas coisas que nos são apresentadas. E como tal fomos nós que lhes atribuímos significado: em função de estarmos deparados com um documentário, esperamos que as imagens de super-8 sejam filmes amadores antigos e não imagens tomadas “ontem” de ficção, representações. A esta altura continuámos a beber a história que nos é contada pelos testemunhos, mas já a dúvida auto-consciente se instalou em nós. É esta história, ou melhor, são estas histórias verdadeiras? São efabulações? Até que ponto será este documentário que nos parecia até quase criminosamente revelador da intimidade familiar falso? Será um falso documentário? Um “mockumentary”? E, dado que não somos Canadianos e não conhecemos algumas das figuras que aparecem a dar testemunho e que supostamente serão de alguma forma figuras públicas no Canadá, nem sequer sabemos qual é o aspecto que essas pessoas têm na realidade, será que os testemunhos que estamos a ver são verdadeiros? Serão actores a interpretar os papéis de quem dá um testemunho perante a câmara num documentário? Mais para o fim, ouve-se Sarah Polley dizer, nos seus diálogos em que se mantém por detrás das câmaras mas falando com quem está de frente para a câmara, que este filme é sobre a memória, sobre a forma como as pessoas constroem as suas memórias e como lhes dão sentido, e como as memórias que construíram por sua vez as constroem a elas (não estou aqui a citá-la ipsis verbis, mas o sentido é este). Um filme sobre a forma como pessoas diferentes que viveram o mesmo acontecimento o recordam de maneira diferente e até contraditória. Um filme sobre a forma como contámos aos outros a nossa própria história e a linguagem com que o fazemos. Ao rolarem os créditos finais, vemos uma imensa lista de actores, entre os quais vários nomes que interpretam o papel dos pais, dos irmãos de Sarah em várias idades. Vemos também créditos de escrita para o pai e os irmãos de Sarah. Mas será que as pessoas que apareceram perante as câmaras são mesmo verdadeiras? Será que são apenas actores a interpretar os papéis de pessoas que existem realmente, apoiando-se em palavras que os próprios escreveram? Será que as parecenças físicas que o espectador encontrou no início do filme entre os irmãos e irmãs de Sarah e a própria Sarah são reais ou na verdade não existem e foram apercebidas apenas porque como seres humanos está na nossa natureza ver significados até onde não existe nenhum, como parte da nossa forma inata de compreender o mundo? Certamente que se investigarmos o assunto em particular deste filme poderemos obter respostas sobre se as pessoas retratadas são “reais” ou se são interpretadas por actores, mas não é isso que é importante. O que é importante é a dúvida. A dúvida sobre até que ponto as histórias que nos apresentaram são completa ou parcialmente verdadeiras ou completa ou parcialmente falsas.  É essa dúvida que torna este filme estimulante para o pensamento. É essa dúvida que o torna um filme sobre a memória,  sobre a forma como as pessoas constroem as suas memórias e como lhes dão sentido. Se não existisse essa dúvida, o filme seria apenas uma história de família exposta com um nível quase criminoso de revelação sobre a intimidade e o espectador não seria forçado a pensar sobre os processos da memória. E é o facto de nos forçar a pensar que faz com que este filme não se corte no gume onde se equilibra.

1 comment:

  1. até aguça a curiosidade, por um lado, por outro, acho que não ando nessa onda...eu agora ando numa onda de Natal, paz, amor, Pai Natal, coisas fofinhas, brilhantes e lindas!!! :D

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